Nascemos com conhecimento de matemática

A neurociência é uma área que me interessa especialmente, em particular naquilo que se relaciona com a educação. Há um tempo cruzei-me com a obra de Stanislas Dehaene e fiquei rendida. O neurocientista francês afirma que temos conhecimentos de matemática à nascença. Nós e alguns animais.
Atribui esta capacidade à evolução do cérebro, mas, no caso das aptidões matemáticas, também à evolução cultural. Segundo ele a matemática não é um "ideal estático e dado por Deus", mas uma área da investigação humana em constante mudança. A própria forma de escrever os números foi fruto de evolução resultante das necessidades cada vez mais complexas da humanidade.
Deixo algumas passagens de "The Number Sense: How the Mind Creates Mathematics" que considerei particularmente interessantes:
"Um dos órgãos mentais especializados do cérebro é um processador de números primitivo que prefigura, sem corresponder, à aritmética que é ensinada nas nossas escolas. Por muito improvável que pareça, numerosas espécies (…) como ratos e pombos, são, na verdade, bastante dotadas de cálculo. Podem representar quantidades mentais e transformá-las de acordo com algumas das regras da aritmética. Os cientistas que estudaram estas habilidades acreditam que os animais possuem um módulo mental, tradicionalmente chamado de "acumulador", que pode conter um registo de várias quantidades. Veremos mais tarde como os ratos exploram este acumulador mental para distinguir séries de dois, três ou quatro sons ou para processar adições aproximadas de duas quantidades."(…) "Este "sentido de número" proporciona aos animais e aos seres humanos uma intuição direta do que os números significam."
(...) "Na escola primária, os nossos filhos aprendem matemática moderna com um cérebro inicialmente projetado para a sobrevivência na savana africana. Como podemos conciliar tal inércia biológica com a velocidade relâmpago da evolução cultural?"
(…) "Quando o nosso cérebro é confrontado com uma tarefa para a qual não foi preparado pela evolução, como multiplicar dois dígitos, recruta uma vasta rede de áreas cerebrais cujas funções iniciais são bastante diferentes, mas que podem, juntos, atingir o objetivo desejado. (…) No entanto, compensa esta lacuna, ao mexer com circuitos alternativos que podem ser lentos e indiretos, mas que são mais ou menos funcionais para a tarefa em questão."
(…) "Os bebés têm algum conhecimento abstrato da aritmética à nascença?"
(…) "De acordo com a teoria apresentada há cerca de cinquenta anos por Jean Piaget, o fundador do construtivismo, as capacidades lógicas e matemáticas são progressivamente construídas na mente do bebé observando, interiorizando e tornando abstratas regularidades sobre o mundo externo (…)."
(…) "A teoria é mais ou menos assim: as crianças nascem sem qualquer ideia pré-concebida sobre aritmética. São precisos anos de observação atenta antes que percebam o que é um número. (…)Sabemos agora que este aspeto do construtivismo de Piaget estava errado. Obviamente, as crianças pequenas têm muito a aprender sobre aritmética, e obviamente a sua compreensão conceptual dos números aprofunda-se com a idade e a educação — mas não são desprovidas de representações mentais genuínas de números, mesmo à nascença! Basta testá-los utilizando métodos de investigação adaptados à sua tenra idade."
(…) "Quando as crianças são colocadas em situações análogas às utilizadas com animais e quando as suas mentes são sondadas sem palavras, as suas capacidades numéricas acabam por ser nada menos do que consideráveis."
(…) "Por isso, parece provável que o bebé consiga identificar o número de sons, mesmo que varie de ensaio para ensaio, e seja capaz de compará-lo com o número de objetos diante dos seus olhos. Se os dois números forem desajustados, o bebé decide não mergulhar mais neste slide, mas sim dar uma olhada no outro."
(…) "A mesma representação do número "3" parece disparar no seu cérebro, quer veja três objetos ou ouça três sons. Esta representação interna, abstrata e amodal permite que a criança perceba a correspondência entre o número de objetos num slide e o número de sons que são ouvidos simultaneamente. Lembre-se que os animais comportam-se de uma forma muito semelhante: eles também parecem possuir neurónios que respondem igualmente bem a três sons ou três flashes de luz. O comportamento dos bebés pode muito bem refletir um módulo abstrato para a perceção do número, implantado pela evolução há muito tempo, no interior do cérebro animal e humano."
(…) "Espero que estas experiências vos tenham convencido de que as crianças têm talento natural para os números. Isto não significa, no entanto, que se matricule o seu filho mais novo nas aulas de matemática noturna. Também não recomendo consultar um neurologista infantil se os seus filhos cometerem erros astronómicos em adições elementares. (…) Embora as capacidades numéricas das crianças sejam reais, limitam-se estritamente à mais elementar da aritmética."